Quarta-feira, 21.01.09

 

Corrijam-me se estiver enganado: urge vir dar o destaque sociocultural que os tremoços merecem. Só quem anda cego é que não se apercebe que o tremoço é um símbolo nacional. Aliás, era da mais elementar justiça ter uns quantos tremoços na bandeira portuguesa. A verdade nua e crua é que na nossa bandeira consta imensa tralha que não diz nada a ninguém.   Assim de repente, estou-me a lembrar de cinco escudetes azuis e vinte cinco besantes de prata. Não eram necessárias grandes alterações: alguns destes últimos podiam ser amarelos e já passavam por tremoços.  Aliás, agora que se inicia a pré-campanha para nova legislatura, gostava que os diversos partidos fizessem constar este tema nos seus programas eleitorais. Numa época em que as diferenças entre as forças políticas são tão ténues, os tremoços podem fazer toda a diferença. “Eu até era para votar no PS mas não os ouvi dizer uma única palavra sobre tremoços. Comigo não contem.”
 
Os tremoços estão em inúmeros momentos da nossa História. Não nos esqueçamos que foi à volta de mesas com tremoços e imperiais que os nossos intelectuais redigiram manifestos, que poetas escreveram obra imortal, que militares conspiraram contra a ditadura, que adeptos de futebol se envolveram nas mais acaloradas discussões sobre arbitragem. Mais: os tremoços iam nas nossas caravelas para ajudar a combater o escorbuto. Bom, se não iam, foi um erro tremendo como está mais que provado.
   
Não é o sabor do tremoço que nos cativa. Se me perguntarem, nem sei bem se o aprecio por aí além. A nossa relação com os tremoços ultrapassa os caprichos das papilas gustativas. Valem pelas ligações que ajudam a criar. São o mote para outra cerveja e dois dedos de conversa. E outros dois dedos para os espremer da casca. Valem muito mais pelo que entretêm. Ajudam a matar o tempo. Ajudam a enganar a fome. Não fazem distinção entre classes. Se há quem goste de mencionar que “os tremoços são o marisco dos pobres”, já eu prefiro ver o marisco como os tremoços dos ricos (que não sabem o que é bom). Isto para não falar da companhia que fazem. Até quando uma pessoa pouco ou nada tem a dizer à outra, o tremoço surge para substituir o vazio incómodo. Quantas e quantas famílias nunca os dispensam nos seus passeios domingueiros? Estaciona-se o carro junto ao mar, a esposa faz crochet e o marido demora-se com o saco dos tremoços a ouvir o relato de futebol. 
 
Eu tenho um sonho. Neste universo do tremoço, falta-nos talvez o vendedor de tremoços a calcorrear as nossas praias no Verão. “Olhó tremoço fresquinho. Olhóóó tremooooço. É para a moça e para o mooooço!” 
 
 Querem mais uma razão para os tremoços nos dizerem tanto enquanto povo? É simples: nós portugueses, gostamos de tudo o que nos é servido num pires. O café, o abatanado, o folhado, o amendoim salgado, o croquete, o pastel de bacalhau, a pevide. A pevide. Essa grande companheira do tremoço. Os dois juntos fazem inevitavelmente um par bem português. E só nós lusitanos sabemos reconhecer os nossos iguais. Tenho observado que não há estrangeiro que saiba comer tremoços. Comem-nos com a casca (não que não se possam assim) mas porque não interiorizaram o conceito. E, por mais que se esforce, também não há estrangeiro que consiga descascar pevides sem as partir todas. Lá está: descascar pevides é uma arte portuguesa. Temos a arte do vidro, a arte do azulejo e a arte de descascar pevides. Quanto mais nórdico e rico for o país de origem do turista, menos capacitado está para  se desenvencilhar com pevides. É assim que eles têm feito avançar a economia. Enquanto nós passamos tardes em esplanadas a descascar pevides, eles estão a dar o litro. Agora pergunto eu: mas o que é que isso importa se as pevides estiverem bem cozidas e estaladiças?
 
Depois de ter levado a cabo um intenso estudo, estou em condições de anunciar que identifiquei pelo menos três técnicas distintas para separar a casca da pevide. Para melhor compreensão, imaginem a pevide como um pequeno barco de recreio. Estas são as abordagens:
 
Técnica I – A mais elementar. Ideal para crianças a partir de 8 anos. Com a unha, lasca-se o casco a bombordo e depois a estibordo. Desta forma a pevide pode ser removida facilmente.   
Técnica II – parte-se a proa com um golpe certeiro e puxa-se a pevide.
Técnica III – A técnica que requer mais técnica. Comprime-se os cascos laterais uniformemente abrindo uma fenda para remover a pevide. Nota: Não experimentar esta técnica no café se não for um profissional!
 
Além dos mini-dicionários e dos CD’s com frases e expressões essenciais para um estrangeiro se desenrascar em Portugal (“Bom dia”, “Diga-me as horas por favor”, “O hotel tem ar condicionado?”, “Minha senhora, quanto leva por um felácio?”), não seria mal pensado criar uns workshops rápidos onde se ensinasse a debulhar pevides. Não há nada pior do que visitar um país e não estar preparado para se envolver na cultura local. Ah pois, eu quando for à Finlândia também alinharei numa daquelas saunas mistas que às vezes descambam para a confusão.
 
I rest my case.
 
 


publicado por Gervásio às 17:03 | link do post | comentar | ver comentários (4)

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